Violência Velada

Quem nunca presenciou uma situação de violência moral e psicológica e simplesmente se calou? Ou melhor, quem nunca presenciou uma situação de violência moral e psicológica e nem, se quer, sabia que estava diante de uma?

Dentre os tipos de violência, destaca-se essas duas, não por serem “piores”, afinal não existe uma violência pior que a outra. Mas por serem abstratas e de difícil associação. Não dói no corpo físico (a princípio), mas dói na alma, e a constante exposição a este tipo de tratamento, permite-se desenvolver doenças que já não mais serão ocultas.

Segundo a lei 11.340/06:

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; […] V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (Lei Maria da Penha – 11.340/06)

 

Todos estão sujeitos, mas as violências que perfuram o ser e todo seu sistema de significado do eu, acometem, principalmente, pessoas que tiveram sua concepção de valor desregulada ao longo do seu desenvolvimento, tendo como reforço de crenças incapacitantes pela sua trajetória, comovendo diretamente na sua autoestima.

Autoestima é a avaliação subjetiva, o valor e percepção que cada um tem si mesmo e ela pode ser boa ou ruim. É construída desde a infância, de acordo com os estímulos recebidos da família e do convívio social; sua manutenção acontece por toda a vida adulta.

Dentre as principais buscas para o fortalecimento da nossa autoestima encontra-se o autoconhecimento, autoaceitação e a autoconfiança.

Subsequente, o primeiro significa ter consciência das suas caraterísticas, personalidade, história, crenças, valores e limites; o segundo, ter respeito para com seus erros e acertos, suas qualidades e defeitos (e não os negligência); e o terceiro, acreditar em sua competência, capacidade e valor.

Uma vítima, ao estar diante de uma situação de violência psicológica e moral, pode vir a acionar todas as suas crenças limitantes, fazendo com que estas crenças a direcionem para um comportamento de maior inclinação a uma autopercepção desvalorizada, falta de esperança e sentimento de impotência, fazendo com que elas se estabeleçam como pessoas sem poder e direitos. (Caridade & Machado, 2006; Félix, 2012; Lynch & Graham-Bermann, 2000 apud Paiva, Pimentel e Moura, 2017). Por isso é tão comum vermos mulheres dependentes de relacionamentos que lhe agridem, e não é porque elas mereçam ou queiram.

O acúmulo da agressão ou até mesmo um fato isolado, dependendo da sua carga genética, é o suficiente para trazer transtornos mentais a tona, com prejuízos por toda a vida.

E como reconhecer essas agressões? O IMP (Instituto Maria da Penha, 2018) nos mostra alguns exemplos. Para violência psicológica, entende-se situações de “ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento (proíbe-se a vítima de estudar e viajar ou de falar com amigos e parentes), vigilância constante, perseguição insistente, insultos, chantagem, exploração, ridicularização, tirar a liberdade de crença e gaslighting (manipular e distorcer informações para deixar a mulher com dúvida sobre sua memória e sanidade); Para violência moral, “acusações de traição, emissão de juízos morais sobre a conduta, exposição da vida íntima, críticas mentirosas, xingamentos que incidem sobre a sua índole, desvalorização pelo modo de vestir”.

Para além do acolher, reconhecer, denunciar e combater, precisamos conscientizar. O trabalho preventivo através de informações pode proporcionar uma mudança de pensamento e consequente mudança de comportamento. Uma sociedade egocêntrica carece de esclarecimento diante de assuntos que parecem tão óbvios. O exercício da empatia, pode ser um caminho.

Buscar o autoconhecimento permite o despertar para as nossas questões bem como para o valorizar a nossa história.  Estar diante de você mesma pode contribuir para entender e cobrar o nosso valor e nosso lugar no mundo: de destaque, respeito e igualdade.

Maíra Nogueira.

Referências Bibliográficas

Paiva, Tamyres Tomaz; Pimentel, Carlos Eduardo; Moura, Giovanna Baaroca. Violência conjugar e suas relações com autoestima, personalidade e satisfação com a vida. Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.10 no.2 Belo Horizonte dez. 2017

IMP. Instituto Maria da Penha. Tipos de violência. Disponpivel em: https://www.institutomariadapenha.org.br/lei-11340/tipos-de-violencia.html. Acesso em: 26 mar. 2021.

BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 27 jul. 2018.

O olhar situado e parcial da Lei Maria Penha que salva vidas

Uma das figuras mais associadas a violência doméstica familiar e contra a mulher é o homem, seja como namorado, marido ou ex, que exercem agressão a parceira, motivado por um sentimento de posse sobre a vida e escolhas daquela mulher.

A repetição contudo, não pode ser encarada como regra geral, pois a relação íntima de afeto exposta na Lei Maria da Pena, não se restringe tão somente a relações amorosas, já que são consideradas violências domésticas aquelas praticadas no âmbito familiar, sendo exercidas muitas vezes por padrastos/madrasta; sogro (a); cunhado (a), ou agregados (a), desde que a vítima seja uma mulher em qualquer idade e pertencente a qualquer classe social.

A Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006. Com 46 artigos distribuídos em sete títulos, ela cria mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em conformidade com a Constituição Federal (art. 226, § 8°) e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro (Convenção de Belém do Pará, Pacto de San José da Costa Rica, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher).

A lei foi direcionada, para ressaltar a responsabilidade da família, da sociedade e do poder público para que todas as mulheres possam ter o exercício pleno dos seus direitos, trazendo para si também a responsabilidade de configurar todos os espaços em que as agressões são qualificadas como violência doméstica, trazendo as definições de todas as suas formas (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral).

Prevê a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, com destaque para as medidas integradas de prevenção, atendimento pela autoridade policial e assistência social às vítimas, dando outras providências.
No todo, a Lei representa um reconhecimento do Estado brasileiro, de que em nosso contexto, os papéis associados ao gênero feminino e o lugar privilegiado do gênero masculino nas relações, geram vulnerabilidades para as mulheres que acabam sendo mais expostas socialmente a certos tipos de violências e violações de direitos.

Ao delinear os vários tipos de violência doméstica, tirando os holofotes tão somente da violência física, claramente a Lei Maria da Penha grita aos quatro cantos do mundo, que não é somente a violência física que deixa marcas físicas e evidentes. É preciso entender que a violência física é só mais um traço de um contexto muito mais global de violência, que inclui a violência moral, humilhações, a violência psicológica, a restrição da autodeterminação da mulher.

A Lei também visa a responsabilização daqueles que “fazem de conta” que não viram a violência doméstica, pois omitir é ser conivente com agressões aos direitos das mulheres, o que também é uma forma de praticar violência.

A Lei Maria da Penha define em seu artigo 5º, em quais relações e contextos, a violência doméstica pode ocorrer:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Destacado ainda no parágrafo único de seu artigo 5º a expressão as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”, para não deixar dúvidas.

Diante dos apontamentos realizados no referido artigo 5º, não restam dúvidas que os autores da violência podem ser:

1)  Maridos, companheiros, namorados – ex ou atuais e que morem ou não na mesma casa que a mulher;
2) Que a Lei aplica-se tanto a relações heterossexuais como a casais de mulheres;
3) Que a Lei não se restringe às relações amorosas, vale para a violência cometida por outros membros da família, como pai, mãe, irmão, irmã, padrasto, madrasta, filho, filha, sogro, sogra – desde que a vítima seja uma mulher, em qualquer faixa etária ou classe social;
4) Que referida Lei também se aplica quando a violência doméstica ocorre entre pessoas que moram juntas ou frequentam a casa, mesmo sem ser parentes, como um cunhado ou cunhada.

Quando ainda não existia a Lei Maria da Penha, a abordagem jurídica dos casos de violência doméstica era baseada na Lei nº 9.099/1995, que minimizava o problema, segundo especialistas, propondo punições alternativas para os agressores, como a doação de cestas básicas.

A Lei Maria da Penha tratou de traçar diretrizes e o caminho para prevenir, punir e coibir a violência doméstica familiar contra mulher. Como na fala da Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso e integrante da Copevid (Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica) do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG), Lindinalva Rodrigues Dalla Costa:

“Antes da Lei Maria da Penha, a violência doméstica era negociada por cestas básicas nos Juizados Especiais como um crime de ‘menor potencial ofensivo’. Antes da Lei, a violência doméstica não era ‘nada’ para o operador jurídico, que agia como bem entendia, sacrificando a mulher para salvar a ‘harmonia familiar’. A Lei Maria da Penha tirou a violência doméstica da invisibilidade, ganhou o gosto popular e é conhecida e reconhecida pela população, que se sente mais segura após sua entrada em vigor para fazer suas denúncias.”
                                   

 Referida lei prevê em seu artigo 35 que sejam criados, pela União, Estados e Municípios, centros e serviços para realizar atividades reflexivas, educativas e pedagógicas voltadas para os agressores, vejamos:
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências:
I – centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
II – casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar;
III – delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar;
IV – programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar;
V – centros de educação e de reabilitação para os agressores.

Esta é uma parte importante das ações de enfrentamento à violência contra as mulheres, mas que ainda infelizmente conta com poucos serviços no País.
Muitas são as conquistas alcançadas pelo reconhecimento da necessidade de promulgação da Lei Maria da Penha. Hoje o Brasil conta com a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, atrás apenas de Espanha e Chile, segundo a Organização das Nações Unidas: a Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/2006).

Sua promulgação delimitou de forma definitiva que a violência doméstica contra a mulher é crime e requer respostas eficazes do Estado e um pacto de não tolerância por toda a sociedade, apontando a verdadeira dimensão desta grave violação dos direitos humanos das mulheres.

É certo que ainda temos um longo caminho a percorrer para a efetivação dos direitos humanos das mulheres no Brasil, mas o olhar situado e parcial que a Lei Maria da Penha proporcionou sobre a realidade brasileira, já fora um grande avanço para promoção do acesso à justiça e da mudança de cultura jurídica patriarcal.

Referências Bibliográficas

Lei Maria da Penha (11.340/2006). Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-006/2006/Lei/L11340.htm> Acessado em 18 de março de 2021.

Violência doméstica e familiar. Disponível em:< https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-domestica-e-familiar-contra-as-mulheres/> Acessado em 18 de março de 2021.

Violência doméstica e familiar. Disponível em:< https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-domestica-e-familiar-contra-as-mulheres/> Acessado em 18 de março de 2021.

Relatórios de pesquisa Nupegre. Disponível em :< https://www.emerj.tjrj.jus.br/publicacoes/relatorios_de_pesquisa_nupegre/edicoes/numero5/relatorios-de-pesquisa-nupegre_numero5.html> Acessado em 20 de março de 2021.

Instituto Maria da Penha. Disponível em: <https://www.institutomariadapenha.org.br/>. Acessado em 20 de março de 2021.

O Despertar Feminino

Ser mulher é uma verdadeira dicotomia. A busca pela liberdade emocional que nos proporciona o desenvolvimento do empoderamento e da autoridade passa por uma construção histórica social carregada de desvalorização, descrença, violência e desamparo. E até os dias atuais carregamos esta carga cultural. Um peso que vai para além do seu significado concreto e se tornou um mecanismo de defesa para a maioria das mulheres: aceitar as condições e a fragilidade é, muitas vezes, uma forma de se manter viva.

Por este motivo é tão difícil nos sentirmos livres. Enquanto a nossa sociedade carregar nas veias o machismo estrutural, nós, mulheres, sentiremos na pele todos os dias. Estar numa sociedade que é, em sua essência, machista contribui para desacreditarmos de nós mesmas. Afinal, por tanto tempo nos foi imposto que não podíamos, que se tornou difícil acreditar no contrário. E é ainda mais difícil quando isso acontece “entre linhas”.

Por isso temos milhares de mulheres que ainda sofrem violência sem saber. Violência física, sexual, patrimonial, psicológica e moral.  Todas os tipos de violência são existentes, mas a moral e a psicológica são as mais difíceis de se enxergar.

“A violência moral é entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria” (Lei Maria da Penha nº 11.340/2006) […] “A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação” (Lei Maria da Penha nº 11.340/2006 – Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018).

Tradução para a verdadeira prisão emocional. Estar nessa prisão nos traz prejuízos psicológicos, financeiros e sociais. E o caminho para a liberdade emocional passa pela informação e, principalmente, pelo autoconhecimento. Ter acesso a informações externas é, relativamente, fácil. Mas o difícil e extremamente doloroso é ter acesso as nossas informações internas. E só acessando este lugar tão íntimo e ao mesmo tempo tão distante é que conseguimos forças para lutar e se libertar.

Quantas mulheres já passou por você e você não estendeu a mão? Quantas vezes você já falou “apanha porque quer” ou “mereceu”? Quantas mulheres foram julgadas por você, sem ao menos conhecer sua história?

A base de toda luta é a busca pelo respeito e liberdade, mas continuar um movimento requer união.

O fortalecimento inicia-se no amparo e acolhimento.
Que saibamos ouvir e acolher;
Amar e defender;

Enxergar e se movimentar, para então conquistarmos a tão sonhada verdadeira liberdade.

 

Maíra Nogueira.

Direito das Mulheres

“(…) Pelo exposto, concedo parcialmente a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário, para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput , da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. (…).”

ADPF 779/MC/DF – Julgamento do STF em 26/02/2021

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  • O estudo da evolução dos textos legais reafirma a trajetória da mulher, suas conquistas e posicionamento na sociedade, mas também o quanto é necessário combater o patriarcado e machismo para que se que atinja a igualdade entre homem e mulher. Como por exemplo, infelizmente, AINDA enfrentamos a tese da legítima defesa da honra masculina como argumento de defesa em casos de crimes de feminicídio ou violência contra a mulher.No dia 26/02/21 o STF,   ainda em sede liminar, dá um grande passo para a mudança desse cenário e garantia de mais um instrumento de proteção das mulheres: a declaração da inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra masculina.  (ADPF 779/MC/DF – Julgamento do STF em 26/02/2021)

    O Ministro Dias Toffoli, em sua decisão, traz que “a prática de um crime em razão da legítima defesa da honra constituiu, na realidade, recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”.

Impactos da pandemia nos conflitos familiares

Manutenção da guarda compartilhada. Genitora que trabalha em hospital. Risco de contaminação não comprovado. Melhor interesse da criança. Pandemia

(…) ”Não se justifica privar a agravante de ver os filhos durante a pandemia do Coronavírus pelo simples fato de trabalhar em hospital, se não demonstrado que, em razão da atividade que exerce, os exponha ao risco de contrair a doença, até porque não há data prevista e nem muito menos definida para que essa situação termine. Diante disso, impõe-se a manutenção da guarda compartilhada acordada judicialmente na Ação de Divórcio.”

( Relator: Des. Rubens de Oliveira Santos Filho, TJ-MT)

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  • Durante a Pandemia, causada pelo Coronavírus-19, algo muito comum entre as pessoas é o fato de que a convivência forçada em tempo integral aumentou os conflitos em diversas famílias. Guarda compartilhada, ausência de pensão, home office, crianças sem aulas e uma série de dilemas começam a surgir com o isolamento social, dando novas características aos conflitos já existentes. Além, claro, das dúvidas quanto a ausência de medicamentos com eficácia comprovada, a distribuição da vacina, a velocidade da contaminação provocada pelo vírus e o caos no sistema de saúde, que se tornou incapaz de atender todos os doentes.

Um desses impactos recaiu nos planos de convivência familiar: a manutenção da guarda e regularização de convivência em face do isolamento social imposto. A decisão pelos judiciários no enfrentamento dos referidos conflitos tem sido pela manutenção da convivência com os genitores, afastando a suspensão motivada pelo isolamento social. O fundamento é a preservação do melhor interesse da criança expressada através do convívio com seus pais.

Impactos da pandemia nos conflitos familiares

Regulamentação de visitas. Genitor que trabalha como músico. Pandemia. Preservação do vínculo afetivo. Melhor interesse do menor. 

(…) ”Não se justifica suspender as visitas presenciais do genitor ao filho durante a pandemia do Coronavírus pelo simples fato de ser músico, se não demonstrado que essa atividade o expõe ao risco de contrair a doença. Ademais, os eventos (shows) estão paralisados no momento e não há data prevista nem muito menos definida para cessar o período de isolamento social.”

(TJMT – Agravo de Instrumento, Relator: Rubens de Oliveira Santos Filho, Quarta Câmara de Direito Privado,data do julgamento: 19/09/2020)

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  • Preservação do Melhor interesse da criança através da garantia do convívio com seus genitores, afastando a suspensão do regime de convivência em face do isolamento social.

A trajetória da mulher nos textos legais

A análise das mudanças da legislação brasileira ao longo dos anos, com foco no papel das mulheres na sociedade, revela que as últimas décadas foram determinantes para a consagração de um sistema de proteção contra a violência de gênero e a busca pela igualdade da mulher. O histórico legislativo revela também quão patriarcal e misógino tem sido a sociedade brasileira e o quanto ainda é preciso avançar.

No período do Brasil Colônia Séc. (XVI ao XIX), regido pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, têm se um período em que as mulheres não tinham direito a fala, suas decisões eram tomadas pelo pai ou esposo e admitia-se a pena de porte da mulher adultera. O Corpo da mulher era propriedade do homem.

Já em 1830, no Código Penal do Império, revoga-se o direito de matar a esposa, dando lugar a atenuante em caso de adultério. A legítima defesa da honra masculina prepondera sobre a vida da mulher e o adultério passou a ser crime, porém para os homens a relação era de concubinato, o que perdurou até o Código Civil de 1916.

Em 1916 o Código Civil, registra os valores da sociedade conservadora e patriarcal à época, ao trazer expressamente que o marido é o chefe da sociedade conjugal. Somente em 1962 essa função passa a ser exercida com a colaboração da mulher, com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4121/62). Somente em 1962, foi legitimada a permissão de que a mulher pudesse trabalhar sem a autorização do cônjuge, e foi estabelecida também pelo Estatuto da mulher casada.

Ainda no referido Código de 1916, as mulheres eram consideradas incapazes[1] (não aptas a realização de atos civis – equiparadas as menores de idades, aos pródigos). Vigorava a indissolubilidade do casamento e a mulher era obrigada a adotar o sobrenome do marido, podendo anular o casamento em virtude da prova de “não virgindade” da mulher à época do matrimônio.

No ano de 1932 as mulheres passaram a ter o direito à voto.

Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 estabeleceu-se a igualdade entre homens e mulheres[2] e que tivemos, de fato, o início de políticas públicas em prol dessa igualdade.  Houve também uma mudança de paradigma no Direito de Família, rompendo-se com a ideia de família sendo somente aquela instituída pelo casamento, cedendo espaço para novos arranjos familiares.

A partir daí é certo que muitos outros diplomas, como a Lei do Divórcio[3], o reconhecimento da União estável, contribuíram para o de resgate da mulher da zona de marginalidade e preconceito. A evolução do Direito de família é impulsionada pelas conquistas da liberdade e do posicionamento feminino na sociedade.

Ainda assim, o Código Penal até 2005 ainda trazia o conceito de “mulher honesta” e até recentemente o Código Penal considerava os crimes contra a liberdade sexual da mulher crime contra os costumes: privilegiando a honra e legitimando a dominação masculina acima da mulher.

Em 2006 a Lei 11.340/06, conhecida como Maria da Penha inaugura, finalmente, um sistema de proteção à mulher.  A lei, que foi promulgada na forma de sanção que o Brasil recebeu da Corte Internacional dos Direitos Humanos, reconhecendo a desídia no caso da Maria da Penha, tem com o objetivo coibir e punir a violência contra a mulher em âmbito doméstico. Em 2015 surge a Lei 13.104/15, conhecida como a lei do feminicídio, que acrescenta como qualificadora objetiva do homicídio. É um marco significativo reforçando a existência do crime motivado pelo contexto da desigualdade de gênero.

Por fim, em 2018, a Lei 13.718 passa a tratar da importunação sexual e nudes e revenge porn (ameaça de vazamento de conteúdo sexual) e a lei 13.772/18 criminaliza o registro de cenas de nudez/sexo sem consentimento.

Não obstante a crescente legislação que consagrou finalmente o sistema de proteção à mulher e a busca pelo estabelecimento da igualdade – direito a não discriminação, os números nos mostram a resistência patriarcal e a violência de gênero permanecem. Resta ausente mecanismos eficientes que coíbam a desigualdade ao acesso ao mercado de trabalho, instrumentos e educação que impulsionem a divisão igualitária dos afazeres domésticos, do dever de cuidar, para que se possa promover a igualdade de oportunidades e a sanção à prática da desigualdade salarial.

Em 2020 o número de mulheres no parlamento não chega a 15%.  No entanto, conforme divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral, as mulheres representam a maioria do eleitorado, com 52%[4], o que concluímos é que nós mulheres não estamos elegendo as próprias mulheres. E por que eleger mulher é importante? Pois por mais altruístas que os homens são, eles legislarão com a visão deles, e não como e para uma mulher.

A busca pelas modificações no ordenamento jurídico objetiva ir além da sensibilização para uma mudança no comportamento da sociedade, mas também como meio de ampliar a responsabilidade estatal, a adoção de medidas concretas, através das ações afirmativas, para que se estabeleça a igualdade entre homens e mulheres e a adequação do ordenamento jurídico brasileiro para eliminar toda forma de violência contra mulher.

A breve análise da trajetória da mulher através dos textos legais que compõem o ordenamento pátrio tem como finalidade, acima de tudo, dar visibilidade ao tema da luta pelos direitos das mulheres e sobretudo como forma de conscientizar e incentivar esta caminhada.

 

 

[1] . LEI 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916. Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156).
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
III. Os pródigos.
IV. Os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação.

[2]  CF de 1988 dispõe em seu artigo 5º, caput, sobre o princípio constitucional da igualdade, perante a lei, nos seguintes termos:
Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

[3] Em 1977 foi editada a EC 9/77 – instituindo o divórcio no Brasil.

[4] Dados do Eleitorado 2020.pdf (tse.jus.br)